“Eu só quero saber como vou comemorar dois títulos”, me disse Alberto no Uber para o Cristo Redentor. Era pouco antes das oito horas e o Rio cuspia raios de sol e urubus. Primeiro eu gostei dessa conversa do Flamengo, depois não gostei nem um pouco. Meu coração bateu.
A viagem ao Rio foi motivada pelo conhecimento futebolístico, ver in loco a torcida do Mengo seria uma experiência catártica. Eu ali, intruso, sentindo a vibração da torcida que cantou Jorge Ben. E reconhecer que ali se abria um timaço. Acontece que a história e o barulho do surdo não calam a sensação de parasita.
Levei na mochila uma camisa do Mengão, com a esperança de que usasse no Maracanã durante a Fan Fest. Fan com N, o que já me soa estranho. Sei que os fãs mesmo, assim não se entitulam, a coisa é mais subcutânea, é torcedor mesmo.
Alberto me conta que dois dos melhores amigos dele são vascaínos e querem a hora do jogo. Não veem a hora de saborear a derrota alheia. Consigo ver a espuma do canto da boca desses amigos. Conheço a sensação. Me despeço do motorista lembrando de outros tempos.
Já estive do lado dos amigos de Alberto nos títulos de rivais. E também já estiveram dessa posição de secadores. Sequei pelo Chelsea, pelo Penarol, pelo Boca Juniors. Veja que não disse torcer. Torcer, pra mim, é só por um.
Mas confesso que tentei algo mais. Tentei uma simpatia pelo Flamengo, ensaiada por um apreço claro ao estilo de jogo incisivo e mortal. Na temporada de 2019, esse foi o time que trucidou outros grandes escudos do futebol nacional. A pergunta era se bateria um dos escudos mais proeminentes do Rio da Prata: O River Plate. O histórico caseiro ajudava. Talvez não haja nos anos recentes uma série de exibições tão convincentes quanto as goleadas em Palmeiras, Corinthians, e, mais notoriamente, Grêmio.
Também não há nos anos recentes uma série de vexames tão convincentes. Eliminações subsequentes em torneios de mata-mata, aproveitamento ridículo contra rivais locais, derrotas para clubes de menor expressão e orçamento, escândalos com dirigentes, gestão patética do departamento de futebol. E a falta de títulos. A vergonhosa falta de títulos. Qualquer um. E você reparou que eu não falei meu clube ainda?
Dói muito ver o Cristo Redentor e a cada 15 pessoas, pelo menos 9 vestiam a camisa do futuro campeão da Libertadores. Ali, do alto, sob a bênção do Cristo e o terno São Judas Tadeu, eles rezavam pela glória daquele clube, e eu, pela recuperação de outro. Sou devoto de outro santo.
Dali a pouco, conheci a praia de Copacabana, como quem desconfia dos próprios olhos. A imensidão da areia clara era povoada por aquela revoada. De modo que, a cada duas barrigas de chopp, uma tem a camisa do Flamengo. Peço a primeira caipirinha e quem vem me trazer é um rapaz com uma regata escrita Nação Rubro Negra. Peço a segunda Caipirinha com a esperança de que algum engravatado me traga o copo. Até a música praieira é algo sobre o Mengão e campeão. Termino o terceiro copo com uma inveja abissal. Queria que fosse o meu time. Na minha competição.
Indo para a Lapa, vejo um pai que leva seus dois filhos em direção ao Maracanã ou à Gávea. Ele pede apoio dos outros e eu inclusive ensaio um grito em conjunto. Raça, amor e paixão. Olho um dos meninos com um boné de aba reta escrito #Vapo. A palavra vem de um sinal em comemoração de um gol. Esse sinal com as mãos degolando, notabilizado pelo meio-campo Gerson e pelo restante da equipe, é repetido por mim. Até solto um : “Vamo ser campeão ein”. O menino sorri e me imita. Desço do trem sem me despedir. Mal sabe ele que por trás das minhas palavras há um laivo de tristeza.
Olho para os Arcos da Lapa onde fica o quarto em que me hospedo. Ali, alguns moradores de rua também usam a camisa falsificada do Flamengo. Falsificada não: paralela, como me oferece um vendedor na rua a poucos metros. Minha ideia era chegar no quarto, despejar minha mochila, colocar a camisa rubro negra e curtir a festa da Cidade Maravilhosa. Quem sabe não encontro o amiguinho que fiz no metrô e vamos juntos.
Chego ao quarto escuro. Abro delicadamente a mochila. Coloco a camisa do Flamengo. Me olho no espelho. Não saio dali.
A primeira pergunta que me vem à cabeça é de quem é esse rosto que se move no espelho? Imagino minha infância na Glória, crescendo com a sombra de um pai fissurado pelo esquadrão de 1981, ou quem sabe um pré-adolescente que chorou ao ver os gols de Adriano e Vágner Love. Pensei em mim como se fosse outro. Acontece que esse rosto que se move tem outra história.
Aquilo que cruza minhas veias não é rubro negro. Não vou a lugar algum com camisa de outro time brasileiro. Não festejo título alheio. Não comemoro gols que não são meus. E ao me ver com a camisa do outro percebo que eu tenho um jeito estúpido de te amar. Que sofre, que foge, mas que não te larga nunca e nem te nega.
Tiro a camisa emprestada e fico de frente ao espelho, com o peito aberto pra arrebentação do mar. Lembro do primeiro jogo que estive e a sensação de olhar a bandeira cobrindo minha cabeça. Alguns homens subindo os degraus de cimento arrastando o pano imenso com o nosso escudo. E aquela bandeira três vezes maior que o mundo, seis vezes maior que o Brasil aos poucos vai tomando forma, se esticando pelo coração. Umas mãos infantis mal roçando no pano que se ergue por sobre as nossas cabeças. Olho para o alto, bandeira esticada de um vermelho vivo, borbulhando com a voz em coro. Acima de mim sou uma onda pelo avesso.
Então, se me perguntarem se eu fui ao Rio ver a festa do Flamengo, digam que não. Se fui ao Rio conhecer o Cristo Redentor, Copacabana, Lapa, sejam sinceros e repitam que não. Digam que fui lá reencontrar quem eu amo. Digam que, agora e sempre, fui torcer pelo São Paulo.
Gabriel Cruz Lima é estudante de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É tio da Maria Luiza e escreve contos e crônicas quando os chakras se alinham.